30.11.07

sorrow, de saskia


fecha-se a noite, e a espera é a pedra que me afaga os passos…


Livro de Horas, de Saskia

13.11.07

Saskia, e de Sorrow

Daqui nenhuma palavra que me leve, nenhuma esperança em quem nos viu. Havia uma tela em lugar claro da sala, e por lá fomos passando. Ainda lá dormimos, se se nos demorarem um pouco mais, mas tão pouco...há um livro aberto e nós estamos lá para o fim. Receio que Ekat se te regresse por mar...mas é noite e é muito tarde, os portos falam silêncio adentro, uma vez e outra. É tão tarde, é tão escuro...
Sorrow, Ale Laisuma

9.11.07

chijimi I

…o aroma de amêndoa, passado que continua a regressar. O poema, como o chijimi, cântigo inicial tecido por mãos frágeis. O poema, caminho para destinos diversos, janela aberta sobre os lugares do mundo, espécie de memória guardiã de uma secreta eternidade. Saskia, os olhos a doerem-lhe de tanto percorrerem as palavras no sentido inverso do tempo, interrogação pousada no espaço desmaiado das folhas: o livro de Ale Laisuma e Sorrow tecendo memórias de Saskia. Outrora, uma outra Saskia, desfazendo na neve os passos magoados das planícies em sangue. É na neve que o fio é fiado e na neve, que ele se vai tecendo. É a neve que lava e branqueia o tecido. Todo o fabrico começa e acaba na neve.
“ A minha vida debruçara-se longamente na alegria breve dos dias e eles roubaram-me a ternura. Hoje, a saudade aquieta-se nas sombras e já não sei se é saudade ou letargia. Ouço uma vertiginosa canção e penso que é o mar, a maré dançando na orla dos rochedos. Dizem que o mar devolve tudo o que leva, mas paira nos meus olhos o desespero de naufrágos. O teu rosto, Sorrow, o teu rosto está sempre entre os navios que partem.”
E no entanto, todo o amor da mulher da Terra de Neve se desvaneceria com ela, não deixando neste mundo um sinal tão seguro como um tecido de chijimi…assim pensava Shimamura, meditando distraidamente na inconstância das intimidades entre os humanos, a sua efémera duração, que nem mesmo conhecia o tempo de existência de um bocado de tecido
Então é isso, paga-se sempre um preço. Por acreditarmos. A dualidade dos afectos, a efemeridade dos afectos. Assustava-a descobrir essa consciência. Dentro do quarto, no espaço tépido da melancolia…



yasunari kawabata, Terras de Neve (excertos a itálico)

foto de akif hakan celebi


19.6.07

chijimi


Quando as folhas começam a cair com os ventos duros e frios, na Terra de Neve, os dias não são mais que uma pintura de tonalidade cinzenta, nebulosa e gelada. Sente-se que a neve anda no ar. O círculo das montanhas em redor surge agora branco, com as primeiras neves…

…a voz de Shimamura como um sopro de vento respira na vidraça. Saskia percorre o embaciado ainda tépido, desenha linhas e pensa sonhos. A paisagem olha-a de fora, esse olhar frio assegura mais forte a fuga a prende-la ao centro do quarto, às imagens cantadas pelos dedos. Afasta-se da janela, o presente a esbater-se contra as paredes, debruça-se sobre a folha. O poema respira entre a maciez da pele e o aroma de amêndoa…



gravura de Ando Hiroshige, yui (série as estações de Tokaido)

Yasunari Kawabata, Terra de Neve (excerto)

14.5.07

teus olhos impacientes e irrealizáveis...

claude monet
(...)
já não conheço o caminho para o tempo antigo. abro as mãos e as palavras revelam-me mortíferos mistérios.
Saskia e as memórias. deixou-as cair no regaço e olhou a tela. suavemente, os versos formaram-se nos lábios vazios: pela neve sem rasto/caminhou/aquele que busca um amor. o poeta, preenchendo a incerteza dos passos.



(título e excerto, José Tolentino Mendonça)

26.3.07

Erase all the memories


Kasimir Malevitch



Saskia partira sabendo Sorrow desabitando a visão da charneca sangrenta. Caminhava para norte – o voo de aves azulíneas dissera-lhe da cidade branca onde começavam os grandes frios, onde espadas feitas neve apaziguavam a mancha vermelha das casas – nos olhos guardara as margens amanhecidas de flores lilases colhidas em tempo longo, flores raras nas mãos de Sorrow. Foi tempo de morrer, dissera-lhe o último companheiro de Sorrow e Saskia partira, na memória sons incendiados do tropel de cavalos rasgando o horizonte.
Lembrava-se bem desse tempo. caminhara como se os passos conseguissem habitar a ausência mas todos os caminhos se fechavam nesse frio imenso onde repousara a inocência. Sabia que não poderia regressar ainda que os ventos lhe trouxessem rumores dos lugares abandonados e da beleza dos campos de trigo.

Pousado o livro na desabrigada recordação dessa tarde, Saskia lia. Mas Saskia não lia, os signos fechavam-se aos seus olhos, os dedos teciam vozes soltas sobre as páginas brancas E a neve tomando conta de tudo...

8.3.07

in my dream you're playing with buckets of sand*



a memória enleava-se na pele de Saskia, cadência maligna embalando a memória. pensava na cidade emudecida ao bravor da peleja, Beja calando as palavras, as vozes, nem um rumor desatara a seda húmida dos lenços apertados nos punhos. e a voz que nada dissera em estremecimento na boca de Saskia queimando-lhe a boca: o que faço eu aqui se todas estas noites cresce-me aos olhos a mágoa de Sorrow pela morte do seu Lidador se trago pelo corpo a sua ausência o que faço eu aqui se cubro o rosto e as mãos não estendem o esquecimento - pensamentos na noite adormecida por sobre a neve, Saskia percorrendo as páginas do livro de Ale Laisuma e por dentro os cadernos de Sorrow gritando fios de sangue e nem havia uma melodia de estrelas secando lágrimas ou movendo o silêncio feito pedra, da noite nessa noite.





foto de katia chausheva

* Guillemots, if the world ends

2.3.07

zoran musik
venice

vinham de muito longe as vozes, enlouqueciam as vozes, parti para não ouvir a morte nos campos, murmura-se Saskia. e na cidade vazia a sombra de Sorrow esbatida em tons ocres, arroxeados, as mãos rubras de sangue as mãos rubras do amor apenas desfeito e a dor no corpo de Saskia a dor abafando o grito devorando a noite melancólica noite sobre os que vagueiam no fundo da noite. Sorrow despontando em lenda no corpo de Saskia sabendo-se longe de tão longe se sabendo.

27.2.07

butterflies & hurricanes II

butterflies & hurricanes

Ana Sophia Pereira

(dos Cadernos de Sorrow)


(...)

Saskia partia e eu do outro lado do mundo a sabê-la longe, muito longe. Ou talvez para sempre longe. Saskia vinha de encontro à língua, e eu a dizê-la em línguas que o corpo desconhecia. E o amor então nas mãos, o amor então nas mãos: Saskia partia e eu do outro lado do mundo, na hoste de Gonçalo Mendes da Maia, meu Lidador, a reconstruir em cada golpe as magias de seu corpo, na curvatura de cada mouro o desenho de seu corpo. Saskia partia e eu regressando a Beja, o meu Lidador morto, e eu a dizer a meus poucos companheiros, de tão brutal combate travado: Saskia parte e eu aqui, do outro lado do mundo, sabendo-la longe, tão longe.

(...)

25.2.07

veneza - san giorgio maggiore

william turner


em voz doce dizia-lhe do fascínio da laguna as cores na direcção do olhar ou da solidão dos invernos, não sabia bem. escrevia 'todo o meu sentir é esta luz'. escrevia, pausadamente, sorriso escondido nas pálpebras. Saskia sabia. Sorrow chegaria ao amanhecer à hora em que se morre no tempo perfeito. Saskia sabia, a essa hora ela já teria partido.

17.2.07

les amants

Pablo Picasso


Saskia e Sorrow, vida fora nesse litoral resíduo da canção, do lado onde os corpos se dançam, se dizem de um nome, se oferecem. E a canção, sempre a canção, como se nada mais os soubesse. Nem mesmo o mundo, o inteiro mundo que ambos aprendiam desde esse primeiro dia em que nos olhos de um os do outro.

14.2.07

a dança II



Sorrow sabia que nenhum outro corpo que não o seu podia aquela tela trazer-lhe diante dos olhos. Ali estivera um dia Saskia, naquela mesma posição, hirta mas balanceada como quem sabe que só amparando a mão na mão amante se pode dar às entregas e por fim sossegar o corpo. Ali estivera, num dia muito antigo, muito distante; ali estivera naquela mesma tarde, a seu lado, sem que o soubessem ambos. Saskia fechava-se-lhe nos olhos e Sorrow voltava a casa, recolhendo da imagem habitada o alimento da sua paixão.

13.2.07

a dança


Saskia saboreava a trégua, o corpo na curvatura do traço, os passos amarrotados. Sentia a levíssima melancolia do outro lado da tela como se a dança, gritada no silêncio, lhe trouxesse o nome de Sorrow. Olhos semi-cerrados, reinventava imagens nas mãos nuas, reinventava-as até lhe sangrarem os dedos. E no interior das imagens, a música - antiquíssima melodia - na leveza dos gestos: don’t fool yourself / life is too good to last. Só assim, perdurava em Saskia, o perfil ausente de Sorrow.



foto de katia chausheva

12.2.07













sandro botticelli


today is the first day of my life